Olá viajantes! Quando me apresentei aqui na coluna, o leitor Felipe Peletti comentou sobre sua curiosidade em saber mais sobre como foi morar nos Emirados Árabes falando pouco inglês e se houveram muitos perrengues.
Gostei muito da sua sugestão, Felipe. Pensei então em conversarmos hoje sobre as situações que a falta de domínio de uma língua pode nos trazer.
Senta Que Lá Vem História
Alguns meses antes de entrar para a Etihad, fui reprovado em uma seleção na Emirates. Até então pensava que meu inglês não era de todo ruim. Mas na verdade meu vocabulário ainda estava muito pobre para conseguir aprovação em alguma empresa aérea do exterior. Lembro que mal consegui desenvolver uma redação razoável no primeiro recrutamento que participei.
Chateado por ter perdido a oportunidade, entendi que precisaria melhorar muito a proficiência no idioma para ter alguma chance de novo. Passei então a assistir DVDs (estávamos em 2008) com som e legendas em inglês. Além de ter conversas com amigos experientes, que dominavam a língua e estavam acostumados a viajar por conta própria ao exterior.
Meses depois, surgiu uma seleção em Porto Alegre para a então desconhecida Etihad Airways. Fiquei sabendo por intermédio de um ex colega super bem informado que conheci no curso de comissários aqui do Brasil. Ah, aproveitando o gancho. Sabe como a história desta empresa aérea começou?
Era 2003 e o Sheikh de Abu Dhabi acordou um belo dia com uma vontade irresistível de ter uma airline para chamar de sua. Afinal, a Emirates de Dubai estava fazendo o maior sucesso e não lhe agradava a ideia de ficar para trás. Sabe como é, os vizinhos poderiam comentar… Dinheiro obviamente não seria um problema, mas faltava todo o restante.
Ele resolveu emitir um Decreto Real e assim a Etihad (que significa união em árabe) começou a nascer. Surgiu a ideia de começar comprando uma espécie de pacote fechado de alguma outra empresa aérea experiente e bem sucedida.
Na aviação, essa operação se chama wet lease e trata-se de um contrato onde uma empresa fornece uma ou mais aeronaves para outra, bem como pelo menos um membro da tripulação. O proprietário assume a responsabilidade operacional, manutenção, seguro e outras responsabilidades legais de operações.
Acabaram chegando a um acordo com a TAM e a Etihad começou assim: com DNA bem brasileiro! Toda base de treinamento para pilotos e comissários, manuais, drills de emergência vieram diretamente da famosa empresa aérea. Por essa razão, o nosso povo sempre foi muito bem recebido na companhia e era uma satisfação poder conversar em português com os SDO (senior duty officers) ou chefia, como se chama aqui. Era uma camaradagem e cumplicidade muito bacanas e um pouquinho de Brasil em uma empresa árabe.
O Perrengue da Seleção
O primeiro perrengue em inglês aconteceu ainda no Brasil e foi o mais marcante. Não por culpa dos recrutadores, que falavam de uma maneira bem clara e calma. Mas pela dinâmica de grupo da última etapa, que começou da seguinte maneira: todos sentaram em um círculo com um papel dobrado embaixo de cada cadeira.
O objetivo era falar sobre o assunto até que um dos recrutadores pedisse para parar. Só poderíamos ler o conteúdo do papel quando a pessoa ao nosso lado começasse a apresentação.
Enquanto não chegava a minha vez, assistia aos outros candidatos brasileiros com seus sotaques perfeitos e com uma desenvoltura que os faziam parecer estar falando em português. Isso começou a me trazer uma insegurança e medo enormes.
Nunca irei esquecer o momento em que passei a olhar para a porta de saída cogitando abandonar tudo e simplesmente sair correndo como se não houvesse amanhã! Os candidatos iam se apresentando, sempre melhores do que eu, passando a vez para o próximo como se fosse o pavio de uma bomba prestes à explodir. “Como vou passar com tanta gente fera aqui? Eu não sei falar inglês assim” era tudo que eu conseguia pensar naquele momento.
Até que minha viagem interna foi bruscamente interrompida com a pessoa ao meu lado levantando-se para começar a falar. Era hora de pegar o bendito papelzinho! O assunto? “Fale sobre a primeira vez que você morou fora”. Justo isso? Até então, a minha maior experiência tinha sido morar em outra cidade, no litoral do meu estado. E agora?
Agora nada. Antes que eu pudesse pensar em algo e em inglês ainda, a minha vez havia chegado. Respirei fundo, levantei e comecei a falar sobre essa única experiência meia boca do jeito que viesse. Com meu inglês “the book is on the table”. Comecei explicando a todos que nunca havia morado fora do Brasil e que iria contar sobre a última vez que deixei a cidade onde nasci.
Você poderia até pensar que no final das contas a apresentação acabou ficando boa. Só que não. Gaguejei, me enrolei, falei bobagem e cometi erros básicos enquanto tentava desesperadamente formular frases. “Foi bom enquanto durou” era tudo o que pensava.
Saímos da sala para um intervalo. Após alguns (longos) minutos, os nomes começaram a ser chamados de volta, inclusive o meu. Não acreditei que havia passado!
Naquele dia, aprendi duas lições que guardarei para o resto da vida: que as situações que mais nos trazem desconforto podem ser justamente aquelas que nos trarão as melhores mudanças. E que o feito é muito melhor do que o perfeito.
Perrengues Arábicos
Desembarcando do avião pela primeira vez em Abu Dhabi, fui percebendo que os perrengues passariam a fazer parte da minha vida a partir de então. Ainda no aeroporto fui recebido por uma funcionária da empresa, que me explicou o básico e me levou até um taxista. Seguiria então para a minha futura morada.
Dentro do táxi, o motorista paquistanês me fazia perguntas para quebrar o gelo e eu não conseguia entender absolutamente nada. Era algo como football, home. Só consegui entender quando ele falou em seu sotaque carregado: “Your English very bad, my friend. No understand me”. Algo como: seu inglês é péssimo, meu chapa! Você não consegue entender nada. Beleza!
Durante o treinamento, foi uma dificuldade absurda entender os professores, britânicos ou indianos. Estamos acostumados a ter mais contato com o inglês americano. Porém, nos Emirados Árabes o inglês britânico domina. Além das suas variantes indiana, filipina, árabe, russa e por ai segue… A solução foi estudar em casa muito mais do que os meus colegas. Brasileiro sempre dá um jeito em tudo, não é?
Perrengues nas Alturas
Ao começar a voar, coisas banais como falar no interfone do avião se tornavam grandes desafios. Dependendo da nacionalidade, era difícil entender uma mensagem que simplesmente precisava ser compreendida. Tive muitos chefes de cabine que claramente ficavam impacientes comigo, mas acabavam entendendo. Eu era novato e tudo fazia parte do processo de adaptação.
Os colegas também não tinham muita paciência na maioria das vezes, especialmente britânicos de Manchester ou Liverpool. Considero seus sotaques carregadíssimos os mais difíceis de entender. Até hoje! Já os australianos falam com gírias demais, tornando igualmente difícil a compreensão. Por outro lado, encaram situações assim com bom humor.
Algo visto com frequência a bordo era a ausência de um esforço por nativos no inglês em facilitar a comunicação. Desacelerar ou simplificar a comunicação eram gestos muito raros. Talvez como essas pessoas falam somente uma língua, fica difícil para elas compreenderem o esforço necessário para lidarmos com um idioma que não é o nosso.
Indianos e paquistaneses também ficam no topo da lista de povos difíceis de se comunicar. Falam realmente rápido com um sotaque extremamente carregado. São inclusive, motivo de piadas debochadas e memes frequentes dentro da comunidade de Cabin Crew. Mais por uma espécie de revanche, por conta da antipatia geral contra passageiros dessas nacionalidades, famosos por serem muito difíceis de agradar e fáceis de reclamar.
Teve também a vez que um viajante árabe veio falar comigo e acabei entendendo nada. Era um voo para o Cairo e ele parecia pedir algo. Pelo momento do voo, deduzi que ele poderia estar querendo um disembarkation card. Aqueles formulários que a tripulação sempre entrega em voos internacionais ao se aproximar do momento do pouso.
Eram comum pedidos assim mesmo um tempo após a distribuição. Quando vim com o papel, achando que estava abafando, o homem ficou visivelmente chateado e virou as costas para mim, saindo nervosamente resmungando coisas em um idioma que na hora não reconheci. Provavelmente eram xingamentos. Até hoje não imagino o que ele queria afinal.
Perrengue Até nos Pernoites
Demorei alguns meses para finalmente criar coragem e pedir comida pelo room service dos hotéis. Especialmente em pernoites na Inglaterra. Eu mal entendia o funcionário e completar o pedido era sempre uma aventura cheia de mistério e emoção.
E nas baladas dos pernoites? Um ambiente que já é naturalmente difícil de se comunicar em qualquer língua, se tornava um dos doze trabalhos de Hércules. Quando vinha de férias para o Brasil, tudo se tornava absurdamente tão mais fácil…
Mas é isso. Quem nunca passou por um perrengue por não dominar o idioma local naquela viagem para o exterior? Já enfrentou uma situação difícil por conta da comunicação com estrangeiros? Me conta o seu perrengue. 🙂
Um grande abraço e até a próxima semana!
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